Nas últimas duas décadas, o avanço da tecnologia e da digitalização transformou profundamente a forma como nos comunicamos, contratamos e nos relacionamos. No entanto, o Código Civil Brasileiro, em vigor desde 2002, não acompanhou esse ritmo. Ferramentas amplamente utilizadas, como plataformas digitais, contratos eletrônicos e interações em ambientes virtuais, ainda não estão plenamente refletidas no texto legal. Essa lacuna, no entanto, pode estar com os dias contados.
Em abril de 2024, foi entregue ao Senado Federal o anteprojeto de reforma do Código Civil, elaborado por uma comissão de juristas presidida pelo ministro Luis Felipe Salomão (STJ), durante sessão de debates temáticos. O texto visa modernizar e aprimorar a legislação civil, incorporando as transformações sociais, tecnológicas e econômicas das últimas décadas.
E o avanço foi concreto: em 31 de janeiro de 2025, o Projeto de Lei nº 4/2025, que formaliza o conteúdo do anteprojeto, foi protocolado no Senado Federal pelo presidente da casa, Rodrigo Pacheco, e agora segue para análise das comissões legislativas.
As alterações propostas não visam romper com os princípios estruturantes do Código atual. Ao contrário: pretendem promover sua adequação aos desafios contemporâneos, assegurando maior segurança jurídica, justiça social e aderência aos valores atuais da sociedade brasileira.
Um dos destaques da proposta é a inclusão de um Livro Complementar inteiramente dedicado ao Direito Civil Digital, que busca consolidar no Código os entendimentos já adotados pela jurisprudência e por legislações esparsas, como a Medida Provisória nº 2.200-2/2001 e a Lei nº 14.063/2020 — que já reconhecem a validade das assinaturas eletrônicas no ordenamento jurídico.
O novo Livro está estruturado da seguinte forma:
I. Disposições Gerais
II. Da Pessoa no Ambiente Digital
III. Das Situações Jurídicas no Ambiente Digital
IV. Do Direito ao Ambiente Digital Transparente e Seguro
V. Do Patrimônio Digital
VI. Da Presença e Identidade de Crianças e Adolescentes no Ambiente Digital
VII. Da Inteligência Artificial
VIII. Da Celebração de Contratos por Meios Digitais
IX. Das Assinaturas Eletrônicas
X. Dos Atos Notariais Eletrônicos (e-notariado)
Esses dispositivos tratam de temas essenciais, como a regulamentação dos contratos e documentos eletrônicos. Embora seu uso já seja amplamente aceito, inclusive com validade jurídica reconhecida por normas em vigor, o Código Civil ainda não incorporou diretamente esses dispositivos. A proposta, portanto, é dar tratamento sistemático e codificado ao tema, promovendo maior segurança jurídica nas relações privadas.
Outros pontos de destaque envolvem a proteção de dados pessoais, reforçando a compatibilidade com a LGPD, e a regulamentação da inteligência artificial, especialmente quanto ao uso ético, responsável e juridicamente seguro dessas tecnologias em relações civis.
A inclusão do Direito Digital no Código Civil visa fortalecer o exercício da autonomia privada, proteger a dignidade da pessoa no ambiente virtual e garantir segurança jurídica ao patrimônio digital, ao mesmo tempo em que estabelece critérios claros sobre a licitude e regularidade de atos e interações digitais.
Importante destacar que o Livro de Direito Civil Digital é o único conteúdo integralmente inédito apresentado pelas subcomissões da comissão de juristas — o que reforça a relevância do tema e o caráter inovador da proposta. Sua inclusão como um livro autônomo facilita o acesso, a compreensão e a aplicação das futuras normas.
Embora o texto ainda possa passar por alterações ao longo da tramitação — um processo que, historicamente, pode levar anos —, o Projeto de Lei nº 4/2025 já representa um avanço importante para a modernização do Direito Civil brasileiro.
Para profissionais e empresas que atuam com contratos digitais, tecnologia, proteção de dados e inovação, acompanhar esse movimento legislativo é essencial. A integração entre o universo jurídico e o ambiente digital está cada vez mais próxima — e o novo Código Civil poderá ser o elo definitivo entre esses dois mundos.
Por Thaís C. Pizzol Vieira – Advogada Coordenadora dos núcleos Relações de Consumo e Recuperação de Crédito Cível com Pós-graduação Lato Sensu – Especialização, Direito Processual Civil – Universidade Presbiteriana Mackenzie e Pós-graduação Lato Sensu – Especialização, Direito Imobiliário – Escola Paulista de Direito.